O último cigarro


Eram as últimas horas daquele mês infernal e ela estava feliz por isso. Foram 31 dias que mais pereceram uma vida inteira: cheia de cor, de lagrimas e cigarros. O mês em que seu sonho se quebrou, findou-se em cacos, como uma linda taça de cristal precocemente depositada nas mãos de um coração embriagado.
                              
Ela havia andado um tanto, um tanto confusa, um tanto triste, um tanto irônica; agora, só estava um tanto vazia. Mas só um tanto, o restante estava preenchido por amizades doces, momentos felizes e os sonhos que lhe restaram. Tinha cicatrizes quase que pulsantes de tão intensas e, o pior, é que não eram as primeiras.
“Tudo bem, já foi, vamos respirar fundo e tentar voltar ao trabalho!” fora este o primeiro pensamento positivo em dias. Pegou a máquina, as lentes e todos os apetrechos necessários: era fotógrafa. Olhava pra tudo, costumava ser atenta e criativa, agora flagrava-se constantemente absorta em nada. “Não consigo, inferno!”; de fato, não conseguia mesmo. Será que além do sonho de um amor tranquilo e verdadeiro, haviam quebrado a sua inspiração, o seu feeling para capturar e eternizar objetos e momentos?
O que lhe restava então? Nada de amor, nada de fotos; sentia-se presa, amarrada ao passado.

Decepcionada pegou o rumo de volta pra casa, acendeu um cigarro, o último do mês – e o último do maço. De repente se deparou com o estranho pensamento de que nada a pertencera durante toda a vida: seus amigos não eram seus, apenas estavam com ela; sua inspiração não era sua, fora embora junto com o ex amor e, sequer seu coração lhe pertencia – foi arrancado a facadas – e a cicatriz que lhe rasgava o peito deixava isso muito claro. Consequentemente começou a recordar o passado próximo, tão próximo que lhe sussurrava aos ouvidos. Todas aquelas brigas, traições e ferimentos; todos aqueles anos de dor e amor incondicional, tudo que o ex amor lhe extraíra pelo peito em uma noite fria, com a faca da cozinha, em uma das tentativas de mata-la. Mas aquela certamente foi a gota d’agua. Ela apenas sobreviveu quando sua mãe interviu, repito em outra ordem: apenas ela sobreviveu. O canalha esfaqueou sua mãe, sua vida, depois levou um tiro no meio do peito enquanto corria da policia.

Que vida mais doentia.

Concluiu seus pensamentos em um tropeção, caiu de quatro em uma poça de lama: “merda!”. Levantou-se bufando e percebeu que a lama havia grudado algo em seu joelho, um papel talvez... Abaixou-se, desgrudou lentamente e limpou com o dedo o que parecia ser uma fotografia. Sim, era uma fotografia. Pegou em sua maleta um lencinho que costumava usar para limpar as lentes da câmera e limpou de vez a foto. Um susto. O que ela fazia naquela foto? Quem eram aquelas pessoas?
Tudo começou a clarear, a rua tornou-se uma parede branca, a poça de lama agora era uma cama abaixo de seus pés, o que a prendia era, na verdade, as amarras da cama; a maleta com a câmera e os outros equipamentos, transformou-se em uma espécie de lancheira e o que havia dentro eram apenas giz de cera, lápis, canetinhas de todas as cores...

“Carla, está na hora dos seus remédios”

Caiu em si, estava louca. E aquelas lembranças que iam à contramão da foto? Quem eram realmente as pessoas de sua vida? O que, afinal, era a sua vida? Um quarto de hospício e remédios diários?

Adormeceu por conta dos remédios, acordou em pé, na rua, de volta a sua vida de passado triste e a sua câmera na maleta. Ufa. Fora apenas um colapso.
No dia seguinte, era o último dia do mês novamente, seu maço só continha um cigarro e sua inspiração havia morrido outra vez...
Algumas pessoas inventam uma realidade pra tornar a vida mais suportável, no caso de Carla, a realidade inventada era insuportável, porque às vezes é melhor sentir dor do que não sentir nada além do efeito de remédios fortes (...)

Comentários

  1. Uaal!! Extremamente forte e denso o conteúdo, porém escrito por uma moça, ficou extremamente delicado... Quem ainda não se imaginou louco, teve essa oportunidade através deste conto surreal, que durante toda a narrativa mescla a realidade cruel, com a fantasia mais cruel ainda, num retorno à realidade, ela percebe afinal que a realidade é cruel, que o amor é tão provável quanto vida extraterrestre, que nada de verdade nos pertence, que sua cruz não diminuiu um único centímetro, mas seus ombros ficaram incrivelmente mais fortes. Parabéns, linda personagem, lindo texto! =]

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  2. Muito impactante e como sempre, com muito sentimento e muita honestidade.
    Creio que fala de Agosto, o mês que dura meses. Creio também que fala de um relacionamento que não deu certo. É triste porque, não apenas no fim, mas no começo e no meio das relações, ficamos loucos, apesar de ser apenas no fim que surtamos de vez. Surtamos e esses surtos ocorrem até inconscientemente, quando não podemos controlar o que ocorre.
    Há aquelas pessoas que gostam de viver uma realidade paralela, que mascara a dor, mas quando ela cai, a dor é maior ainda. Acho válido isso, porém, é necessário dosagem. Remédios também são necessários dosar, e o amor...esse deveria ser tarja preta, ingerido sob rigoroso controle, sem atrasos e sem abusos...
    Lindo, querida!

    Beijos!

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